Paledriver

Game | Disco Elysium | 2019 | ZA/UM

É até difícil saber por onde começar. É provavelmente o melhor jogo que já joguei em alguns sentidos, e quando fui ver a recepção crítica, é largamente citado em listas de games históricos.

Primeiro, vamos ao básico: Um RPG de detetives, com basicamente nenhum combate, onde a árvore de habilidades é basicamente toda de soft skills e traços de personalidade e aspectos metabólicos e/ou fisiológicos. No formato ficção interativa, é nos diálogos que ocorrem os "checks", os combates com a realidade, quando dados são jogados e a probabilidade é baseada em ações anteriores e nessas skills. A estética é pós-soviética, noir, aquarelada, pseudo-moderna, decadentista, um encontro entre Emile Zola e True Detective (S01). Visão isométrica, tudo redondo na coerência entre fotografia, música e diálogos.

Mas a segunda camada, a não básica, é que traz o que é especial e até difícil de dizer: o wordbuilding é incrível e sem medo de fantasiar, trazendo toda guerra cultural e política dentro de um mundo fantasioso, mas ainda mais impactante é como todo esse conflito reverbera no protagonista, sei lá, innerworldbuilding, já que, amnésico e com um problemaço pra resolver, Harry du Bois vai internalizando o mundo e discutindo seus aspectos com suas vozes interiores. Seu sistema límbico fala uma coisa, seu cérebro reptiliano fala outra. Lógica e Volição discutem, Eletroquímica sugere, Percepção aponta. Eu nunca tinha jogado nada que unisse esses elementos todos. Sim, eles me agradam separadamente e eu busco obras que trazem um ou outro elemento, que tenham inclusive ares de "teatro pós-dramático"

Em Twin Peaks, acompanhando um detetive inicialmente em completo domínio de si, investigando o assassinato de uma garota, quando vemos que as coisas começam a ficar estranhas, com elementos que, não fica claro, especialmente quando Lynch passa a ter total controle da obra, podem ser batalhas internas, do mundo interno de um protagonista que não está são. Aqui em Disco Elysium a coisa é diferente, pois estamos olhando para a realidade e o assassinato misterioso envolve - neste mesmo mundo - muito mais que o assassinato em si. Enquanto Twin Peaks arrasta seu detetive para um conflito da ordem do transcendente, Disco Elysium (e True Detective S01) esmagam seus heróis com forças da imanência, e mesmo quando eles desconfiam que tem algo paranormal envolvido, ninguém (nem nós, nem eles) realmente chegamos a acreditar nisso.

E aí, o que torna o jogo realmente geracional e o separada demais de seus pares, é a qualidade do texto. O texto em si é excelente, poderia ser um livro e seria um ótimo livro. É profundo, é tocante, é instigante, é não-óbvio. Isso, mais as vozes que dão cor ao texto e foram muito bem selecionadas (foi um trabalho in-house inclusive, algo não tão comum nesse gênero de games), tornam a experiência imersiva demais.

Muito bom, grande jogo.