Paledriver

Livro | Grande Sertão: Veredas | 1956 | Guimarães Rosa

É até difícil saber por onde começar. Basicamente, sempre ouvi elogios, inclusive um que me marcou: "Vale a pena ser brasileiro porque assim podemos ler Grande Sertão no original". E é uma absoluta verdade.

Uma obra-prima, uma das expressões artísticas mais impressionantes que já vi. Inicialmente, achei uma mistura de Meridiano de Sangue com O Segredo de Brokeback Mountain, narrado num estilo True Dectective S1, com o Riobaldo respondendo à invisíveis entrevistadores, um Rust jagunço. Mas a coisa escala, e é estranho, porque a linguagem é um absoluto caos em sua formalidade, mas quando você para de tentar entender a partir da estrutura normal e apenas deixa a fala de Riobaldo fluir, de alguma forma você começa a entender tudo, inclusive palavras que nunca tinha visto antes. É assombroso. Se o fluxo de consciência é algo que impressiona quando bem construído, é talvez ainda mais impactante um tão inesperado fluxo oral.

Mas se fosse só isso, seria um mero - ainda que incrível - exercício estético de Rosa. Mas a história é incrível. Sendo, com certeza, uma espécie de Meridiano de Sangue brasileiro, a viagem pelos ermos e perigosos infernos é marcada por aventuras, violência, causos, filosofia, amizades... Pela questão primordial sobre a natureza do Mal, sua manifestação, e as contradições e ambiguidades do comportamento humano frente ao diabólico. Porém, aqui não há um Juiz Holden, uma encarnação, embora Hermógenes possa parecer ser à primeira vista. Não, Rosa foi mais sofisticado, e trouxe Fausto para o palco de maneira genial: Riobaldo fez ou não o pacto? A história de um homem habilidoso, sensível e rude, que no limite de sua relação com o Mal do mundo resolve convocar o Diabo e oferecer uma troca, e NÃO SABE SE DEU CERTO OU NÃO, mas altera seu comportamento, conquista, domina, subjuga, vence e vence, variando comportamentos violentos com a velha compaixão.

É interessante, revendo, que o arco do Diadorim não me chocou, e provavelmente me tocou de maneira diferente do que foi à época, e talvez da própria intenção de Rosa. Para mim, o amor não realizado entre os dois jagunços era apenas um tempero a mais na construção específica de Riobaldo, quando ele não era Tatarana e muito menos Urutu-Branco. O falso nome Reinaldo, nesse contexto, seria apenas para disfarçar sua afiliação. Talvez a revelação de que era, afinal, uma mulher - Maria Diadorina - tenha, para muitos, "salvo" Riobaldo da homossexualidade. Porém, como Diadorim era um homem para nosso herói, como as sensações o fizeram de fato refletir sobre a sexualidade e desejar aquele outro de maneira consciente e decidida, não me parece mudar muita coisa, exceto pelo sofrimento com a morte do amigo/amor, que, afinal, poderia ter sido consumado sem o pecado de amar alguém do mesmo sexo. Porém, de toda forma, o plot twist é em si muito bom, surpreendente, e eleva Maria Diadorina ao patamar de verdadeira heroína da história: guerreira de valor no combate, vingou o pai, matou Hermógenes e cuidou do homem que amava, um amor que morreu sem ser realizado carnalmente.

Assim, um dos maiores livros já escritos não foge de nenhuma contradição, ao contrário, corre a narrativa a partir de cada uma: bem/mal; homem/demônio; sertão/mundo; macho/fêmea; violência/paz. Não é surpresa que os protagonistas tenham 3 nomes cada um: Riobaldo - Tatarana - Urutu Branco & Reinaldo - Diadorim - Maria Diadorina

Livraço, obra-prima, pois, além de todos esses pontos de complexidade, ainda constrói incríveis cenas de ação, de tirar o fôlego, com grandes tiroteios e emboscadas e perseguições. Livraço.