Paledriver

Livro | Satantango | 1985 | László Krasznahorkai

Um livro estranho, difícil no começo, inquieta, incomoda. Mas depois você vai pegando o fluxo do estilo e a magia começa a acontecer.

Meu primeiro impacto foi como se Twin Peaks encontrasse Caverna do Dragão, além de comparações entre Irimiás e o Juiz do Meridiano de Sangue, que me impressionou muitíssimo. Porém o Juiz é obviamente diabólico, o Irimiás é ambíguo. E essa chave da ambiguidade está em todo Satantango. E, claro, tem a coisa da música. O Juiz interpreta tudo como uma dança, quase um cerimonial, como deixa claro para o Kid já no final do épico. Na obra húngara, a dança está no estilo e no ritmo, e só é mencionada, de maneira inclusive marcante, no final da primeira parte, no transe coletivo da dobra da fita de Moebius. E foi essa imagem da fita de Moebius, que li em um crítica ao livro, que me deu o estalo para entender toda a ideia.

É real ou ficção? É materialista ou metafísico? Irimiás é bom ou mau? Futaki é um rebelde ou só um outro tipo de escravo? Coletivo ou individual? O Doutor é um eremita misantropo ou ele se importa?

Krasznahorkai gera um clima de suspensão do tempo, uma decadência generalizada (que alguns comentaristas adjetivam como "apocalíptica" mas eu só concordo em um sentido bem específico de apocalipse, o de um modo de vida, não o do planeta, etc) que torna todos ali vulneráveis à promessas de salvação, à esperança. A vulnerabilidade torna todos manipuláveis ao ponto de esquecerem até o básico da autopreservação.

Mas mesmo essa esperança é ambígua, tem dois lados que na verdade são o mesmo (a fita de Moebius), pois é um otimismo intermitente, sempre contaminado por uma sensação de mau presságio.

Do ponto de vista narrativo, eu terminei o livro tendo certeza que Irimiás era um vigarista. Manipulador habilidoso aproveitando-se da miséria material e espiritual dos assentados. Mas essa interpretação crua só é possível se você pular alguns pontos da história. O que o Oficial do Estado pede para Irimiás, exatamente, que o faz voltar para o assentamento? Não fica claro, mas no final do tango que são os capítulos, vemos que Irimiás fez um relatório de cada assentado para o governo húngaro, onde os critica pesadamente mas ao mesmo tempo os reporta como inofensivos (até mesmo Futaki). Irimiás compra um monte de armas e explosivos, e não o vemos usá-los, nem sabemos o motivo, mas ele consegue o material bélico com agentes do Estado. Por qual motivo Krasznahorkai incluiu esses elementos na história?

Na minha opinião, Irimiás pode ter mesmo salvo todos. Se ele foi enviado para espioná-los/matá-los, como a compra de armas e explosivos sugere, ele provavelmente o faria no castelo, com todos lá. Mas não o faz. Talvez a visão dos véus e do corpo de Estike indo ao céu tenham levado-o a uma conversão. Ao pegar o dinheiro deles, levar para longe e fazê-los sumir cada um para um canto longe do vilarejo, ele os tira dos olhos do governo, protege o dinheiro deles e dá um destino. Ao falar terrivelmente mal deles para as autoridades, ele se protege do autoritarismo de Oficiais que se veem como protetores e salvadores em uma filosofia paternalista do Estado (ou de qualquer poder efetivo) camuflando-se ao ser ainda mais cruel e sociopata. Isso manipula a Autoridade, e ele o faz com a mesma habilidade q manipula os camponeses. Com o dinheiro dos assentados na mão, poderia ter seguido a ideia de Petrina e simplesmente desaparecido - fugindo dos assentados, sim, mas também do Estado - mas ele, ao invés disso, bola um plano e os tira do caos que havia se transformado o castelo após a noite de pesadelos. Os separa, dá um destino e uma função na sociedade, os tira do limbo que era o assentamento.

Ainda assim, sinto que me escapa a parte da fita de Moebius que é o arco do Doutor, que envolve também, é claro, Estike, as Horgos no moinho, o louco na capela, os 13 dias no hospital e o "fim/início". Minha sensação que esse é um arco 100% dedicado à metáforas, algumas que dialogam diretamente com o arco de Irimiás, outras que para mim não ficaram claras.

Se existe a dimensão em que a história é escrita nos cadernos do Doutor, o que faria de Irimiás um alterego dele, e eles são, cada um em sua dimensão, a aranha invisível que tece a teia, de fato o comportamento deles se assemelha. Pois o Doutor é cruel, nojento mesmo. Ainda assim, no final, ele se importa com os assentados e os salva do limbo.

Talvez eu em breve releia. Dê outra volta na fita.